Crítica: David Byrne une música, teatro, dança e carnaval em noite memorável no Rio
Via O GLOBO
POR LUCCAS OLIVEIRA
RIO — "Acho que vocês já perceberam que este é um show diferente, né?", pergunta um David Byrne descalço e de terno cinza no palco da Barra da Tijuca que tanto muda de nome — atualmente Km de Vantagens Hall. As cerca de mil pessoas presentes (até o início da apresentação, era o que marcava o contador de público exibido num monitor, embora a produção afirme que houve 3 mil) sorriem da tirada que soa modesta. Lá para a sexta música, elas já tinham percebido que "diferente" não estaria nem entre os dez primeiros adjetivos que usariam para descrever o que estavam testemunhando.
Veja bem, não é todo dia que a pegada eletrônica-punk-new-wave dos Talking Heads se une de maneira coesa a batuques carnavalescos que saem de uma minibateria de escola de samba. Não é todo show que tem uma banda de 12 habilidosos músicos (sendo seis percussionistas, três deles brasileiros) que, sem fios, plataformas, pedais ou amplificadores aparentes, toca, dança, canta, marcha, brinca de roda e até bate uma bola no palco.
E, acima de tudo, não é todo artista consagrado, vencedor de Oscar e Grammy, que, aos 65 anos, troca o retorno fácil da execução de sucessos do passado por números artísticos que ainda o instiguem, o provoquem. Foi, portanto, um show diferente, contanto que aceitemos o termo como sinônimo de genial.
Foto: Liv Brandão
O espetáculo — tão musical quanto teatral — já tinha sido adiantado, em parte, no último sábado, em São Paulo, no Lollapalooza Brasil, num dos melhores shows entre as mais de 70 atrações do festival (relembre).
Lá como cá, Byrne iniciou o show dando aula de neurociência — afinal, por que não?. Sentou em uma cadeira posicionada no centro do palco delimitado por três grandes cortinas metálicas. Pegou um cérebro de plástico que estava em cima da mesa e entoou os versos didáticos de "Here", faixa que encerra o recém-lançado "American utopia", seu primeiro álbum de estúdio em 14 anos.
"Aqui é uma região de detalhes abundantes", "aqui está uma região que raramente é usada", "aqui está uma área de grande confusão", citou, enquanto apontava para partes do órgão, já em pé, na beirada do palco, encarando os curiosos com os olhos, sem piscar.
Entraram, então, os dois backing vocals bailarinos enquanto a melodia ia ganhando força. "Aqui estão muitos sons para o seu cérebro compreender/ Aqui o som é organizado em coisas que façam algum sentido", brincou Byrne, já no final da música. Saíram a mesa, a cadeira e o cérebro, e entraram os demais responsáveis por esses sons.
Ao longo de um repertório de 21 músicas, oito delas dos Talking Heads, Byrne e seus 11 companheiros de terno cinza apresentaram coreografias assinadas por Annie B. Parson para cada canção. Muitas vezes, era o vocalista quem puxava a dança da vez com algum passinho desengonçado.
Dificilmente os músicos ocupavam um trecho do palco que já tinham explorado antes e os percussionistas trocavam de instrumentos constantemente. Até uma sinistra linha de berimbau tocada pelos brasileiros Mauro Refosco, Davi Vieira e Gustavo Leite encaixou perfeitamente em "I dance like this".
No bolo sonoro "organizado de forma que faça sentido" coexistiam os elementos explorados por Byrne nas últimas quatro décadas: o pulso dançante do new wave nova-iorquino, a rebeldia punk, as sequências eletrônicas disruptivas, as melodias pop luminosas, o groove, os elementos de música tribal africana.
Nessa viagem dramatúrgica de tom assumidamente carnavalesco, músicos de diferentes idades, tamanhos e origens saíam e surgiam no palco, fazendo uso daquele espaço aberto incomum para um show "de rock". Como num balé estranho e belo, hipnotizaram aquele milhar de espectadores que, entre dancinhas, se mostrava tão perdido quanto maravilhado diante do excesso de informações no palco.
Era um show para digerir, para explorar detalhes e trocar energia, por isso não houve grandes coros — apenas um esboço em "Burning down the house", um dos poucos clássicos da noite, mas até a pequena turma do "toca 'Psycho killer'!" só foi pedir o hit perto na despedida.
Também não houve grandes discursos ou diálogos. Nem precisava. Byrne encerrou o espetáculo com seu ato mais intenso. Voltou para o bis com um bumbo na mão e fez uma versão "com gosto de Bahia" de "Hell you talmbout", canção-protesto lançada por Janelle Monáe em 2015.
"Diga o nome dele(a)", ordenava, em português, enquanto pessoas assassinadas por forças policiais, por motivação política ou por preconceito eram citadas pelos demais músicos, como o pedreiro Amarildo de Souza, a jovem trans Bruna Tavares e a vereadora Marielle Franco.
Em noite que dificilmente será esquecida por aquelas poucas testemunhas, o revolucionário Byrne deu sinais claros de que ainda pode ser tão influente quanto na década de 1980 ao provar que, mesmo numa era cada vez mais visual, um grande espetáculo musical não precisa de telões, projeções, chuva de papel picado ou outros efeitos espalhafatosos. O segredo segue sendo a performance.