David Byrne: As utopias constroem-se dançando
Via SAPO 24
Rita Sousa Vieira | MadreMedia
Paulo André Cecílio
Rita Sousa Vieira
Por volta da terceira canção, que era nada mais nada menos que 'I Zimbra', tema dos Talking Heads construído a partir de um poema dadaísta de Hugo Ball, não houve quem resistisse. Num assomo de coragem, o público pulou das suas cadeiras, confortavelmente colocadas no Hipódromo Manuel Possolo, e ocupou a frente de palco com um único objetivo: o de dançar, rodopiar, esquecer por alguns instantes o terror que nos consome diariamente.
Foi esta a utopia que David Byrne trouxe a Cascais, naquele que foi o primeiro dia do festival EDP Cool Jazz. Uma utopia onde o positivismo é quem reina e a alegria se sobrepõe à miséria. Uma utopia que não é apenas americana, como é dito no seu novo álbum, “American Utopia”; é de toda a raça humana, a mesma sobre a qual incide o foco visual e auditivo do seu espetáculo. Em palco, David Byrne não recorre a instrumentos fúteis que por vezes só servem para que nos distraiamos da música. Não há grandes jogos epiléticos de luz, não há fogo-de-artifício, não há serpentinas a flutuar, não há vídeos ou tiradas vãs; há canções e coreografias extraordinárias, teatrais, dos onze (!) músicos que o acompanham, que de fato impecável e pé descalço vão transformando toda a área circundante numa enorme pista de dança, com o ex-Talking Heads não em plano maior, ou sequer como maestro, mas como parte integrante do cenário.
A grande lição que Byrne trouxe a Portugal foi a de provar que somos todos fruto do mesmo sangue, que não existem distinções entre raças, géneros ou contas bancárias. Mostrar que podemos seguir todos pela mesma estrada para nenhures, em harmonia e comunhão, de mãos dadas e peito cheio. Na sua utopia pessoal, que podia ser a planetária, não há espaço para falsidades ou sentimentos menos bons, ainda que se possa redescobrir a paranóia presente em temas como 'Slippery People' ou 'Once In a Lifetime', ambos da banda que lhe deu nome. David Byrne pode não querer repetir nunca mais a experiência Talking Heads, mas é dela que mais bebe ao construir os alinhamentos dos concertos desta nova digressão. Por outro lado, os fãs nunca o perdoariam se assim não fosse; é que os Talking Heads, nascidos e crescidos no período fértil do pós-punk, e que se tornaram posteriormente numa das maiores bandas da década de 80, ainda ressoam em muitos pulmões hoje em dia.
Dos poucos momentos em que David Byrne parece abandonar o espírito comunitário que pautou grande parte do seu concerto, o impacto mede-se aos palmos: durante a história contada em 'I Should Watch TV' (porque são na sua maioria histórias, e não “só” canções), tema composto com St. Vincent, um registo mais operático dá lugar a um duelo do músico com a sua própria banda. E, depois desse registo, vem o pedido: votemos. “Podem pensar que estão seguros em Portugal, mas as coisas mudaram na Europa”, acautelou. De facto, com Trumps, Brexits, Hungrias e Itálias à espreita, prestes a alimentarem-se nos nossos medos para os seus ganhos pessoais, mantermo-nos alerta nunca foi tão importante quanto hoje. Se mesmo assim o medo imperar existe uma solução: entrarmos todos na casa de David Byrne. É ele quem nos convida, através do primeiro single de “American Utopia”, 'Everybody's Coming To My House'.
créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia
O que não significa que ele próprio não seja menino para a incendiar – não pelo fogo, mas pela dança. Aos 65 anos de idade, e provavelmente fruto do seu amor pela bicicleta e correspondente físico, David Byrne continua a mostrar uma pedalada invejável e movimentos que levariam à loucura quem quer que estivesse na pista de uma qualquer discoteca do mundo. Não sendo o Hipódromo uma discoteca, a essa loucura ajudou, naturalmente e em muito, o facto de qualquer tema dos Talking Heads ter sido recebido como se Chris Frantz, Tina Weymouth e Jerry Harrison estivessem em palco, com ele. Só que os três restantes membros da banda que marcou uma geração (e os filhos desta) provavelmente não teriam entoado um rap em bom português do Brasil, como aqui aconteceu...
De 'Toe Jam', tema co-criado com Fatboy Slim que tem um vídeo completamente not safe for work (traduzido por miúdos: não o vejam no trabalho), passando pela fabulosa 'Born Under Punches' e pela secção industrial, à la Nine Inch Nails, de 'I Dance Like This', até 'Like Humans Do' (Windows XP, lembram-se?) e 'Dancing Together', já no encore, foi um pulinho. Que se sucedeu a tantos outros, dados em frente ao palco ou mais longe, a tantos abraços, a tantos beijos, e a tantos agradecimentos ao que quer que seja que nos permite esta coisa, sobretudo bonita, de estarmos vivos. E que terminou com uma lembrança aos mortos, através de 'Hell You Talmbout', canção de protesto de Janelle Monáe que lista vários afro-americanos mortos pela polícia dos EUA. Mas nem esse momento mais introspetivo foi capaz de apagar a melhor memória do concerto: David Byrne rindo-se que nem um perdido, no final de 'The Great Curve'. A felicidade dele foi, é, e continuará a ser também a nossa, enquanto houver pernas para a dançar. E enquanto pudermos acreditar em utopias.
Antes de Byrne, a noite foi também de Sara Tavares. A cantora portuguesa apresentou-se em palco com a mesma voz encantadora de sempre, acompanhada por uma banda em passo rítmico suave e trazendo até Cascais canções prenhes de África por todos os poros, como se Cesária Évora tivesse ressuscitado ali mesmo. Ela prometeu não dizer a ninguém se alguns dos presentes se escapuliram do trabalho só para ouvir 'Coisas Bunitas'. Nós agradecemos a não-presença de chibos.