A utopia de David Byrne vai de Nova Iorque a Trás-os-Montes.

Via Blitz

RITA CARMO

RUI MIGUEL ABREU

Algumas horas antes da sua apresentação na abertura do EDP Cool Jazz, David Byrne enviou para todo o planeta a sua habitual newsletter focada na sua mais recente campanha, "Reasons to Be Cheerful", um ato de resistência que prefere olhar para o planeta e procurar nele razões para se sentir ânimo ao invés de ceder ao negativismo e ao desespero. De acordo com o veterano 'art rocker', “há em Portugal um lugar por descobrir onde a música acontece”. Um texto de Diogo Martins descreve depois as atividades em Chaves da Indieror, uma associação cultural que tem procurado transformar a realidade através da arte, colocando em marcha uma autêntica “utopia transmontana”. Não é nenhuma coincidência, pois claro, que David Byrne tenha enviado este email no dia em que trouxe ao nosso país a sua encenação de uma “utopia americana”.

David acredita no poder transformativo da arte. Daí usar o seu “palanque” para chamar a atenção para o trabalho meritório de uns quantos adolescentes transmontanos. E daí ter criado o que ele mesmo descreveu como o seu mais ambicioso concerto desde a produção dos espetáculos imortalizados no filme de Jonathan Demme, "Stop Making Sense".

Poder transformativo da arte. Deve pensar-se nessa ideia quando se toma o verdadeiro peso da continuada recusa de David em alinhar numa reunião da sua antiga banda, os Talking Heads, facto que lhe tem valido veementes críticas de Chris Frantz, o antigo baterista dos homens de 'Burning Down The House' que, nas redes sociais – e até em declarações à BLITZ – sempre manifestou incredulidade face à indisponibilidade do seu antigo companheiro. Essas críticas tornaram-se ainda mais ácidas quando a atual digressão de "American Utopia" foi anunciada: é que no alinhamento dos concertos, como ontem se comprovou, há uma generosa quantidade de canções dos Talking Heads. Compreenda-se: a recusa de David Byrne não se manifesta em relação às suas criações passadas e, comprovadamente, nada tem que ver com o glorioso material dos Talking Heads, antes com as armadilhas da indústria, com a ideia do concerto de rock como produto comercializável: “ouça as canções tal como delas se lembrava, compre a t-shirt, finja que tem outra vez 22 anos”.

Ontem, no Hipódromo Manuel Possolo em Cascais, na noite de abertura da 15ª edição do EDP Cool Jazz, a dimensão corporativa do evento era por demais evidente, com a previsível profusão de logos a contrastar com a proposta visualmente espartana do concerto de David Byrne. A generosa audiência – que se não esgotou a capacidade do recinto não deve ter andado muito longe – também aparentava em boa parte o ar de quem não se teria nada importado de receber a opção “ouça as canções como dantes, compre a t-shirt” e tal. Mas isso não fez Byrne ceder sequer um milímetro no seu planificado espetáculo, coreografado até ao mais ínfimo detalhe.

O palco apresentou-se vazio de qualquer adereço rock imediatamente reconhecível: não há uma bateria elevada, máquinas de fumos, paredes de amplificadores, um microfone a meio para o frontman; não há um arsenal de instrumentos que reforce alguma ideia de superioridade técnica dos artistas em palco; não há cenários ou “backdrops” com o artwork do álbum que se quer vender; não há uma floresta suspensa de focos, robots de luz, nem parede de LEDs. Nada disso. Só uma dúzia de músicos / bailarinos / atores, todos vestidos num similar cinzento metálico, numa clara recusa da tradicional 'farda' rock – recusa, aliás, que Byrne vem afirmando desde, precisamente, "Stop Making Sense" e da sua adoção do “fato executivo” como uma espécie de 'armadura conceptual«.

E depois há um alinhamento fixo e cristalizado, que passa por boa parte do material de "American Utopia" – com 'Here' logo a abrir e temas como 'Dog’s Mind', 'Everybody’s Coming to My House', 'Doing The Right Thing', 'I Dance Like This', 'Bullet', 'Everyday Is a Miracle' – que se cruza com uma piscadela de olho à aventura com St. Vincent ('I Should Watch TV'), regista paragens pontuais na carreira a solo (como 'Like Humans Do', do álbum Look Into The Eyeball, de 2001) ou em material colaborativo (atirou-se a uma versão de 'Toe Jam'. tema que fez originalmente com os Brighton Port Authority, de Fatboy Slim, e em que participava também Dizzee Rascal) e se espraia generosamente pela memória dos Talking Heads – escutaram-se 'I Zimbra', logo no arranque da atuação, 'Slippery People', 'This Must Be The Place (Naive Melody)', 'Once in a Lifetime', 'Born Under Punches', 'Blind', 'Burning Down The House' ou 'The Great Curve', todas recebidas com compreensível entusiasmo pelo público.

Ou seja, Byrne concede mais espaço no alinhamento à memória dos Talking Heads do que ao seu próprio presente. O que não significa necessariamente que seja uma concessão à indústria rock da nostalgia (essa operava em força relativamente perto, com a atuação dos Scorpions no Estádio Municipal de Oeiras, um dia depois de Kiss e Megadeth), antes um reforço da ideia de que este grande mural de uma América utópica tem vindo a ser pintado por Byrne desde os alvores da sua carreira.

Para interpretar todo este material, a dúzia de músicos em palco usa os seus instrumentos suspensos, como se uma banda filarmónica ou de uma marching band de Nova Orleães se tratasse, só que em vez de sopros (Byrne já fez isso...) há percussões, guitarras, teclados. E como Byrne faz sempre questão de frisar, de acordo com relatos de outras apresentações nesta digressão, tudo é executado ao vivo: “um amigo meu veio ter ao backstage de um concerto em San Antonio, no Texas, há um par de meses e perguntou se o que se ouvia era playback...”. A história serve para Byrne deixar claro que há aqui um elevado grau de proficiência técnica. É que além das poses, das intrincadas coreografias, todos aqueles artistas em palco estão ainda a tocar toda a música que se escuta no PA. Sem o apoio de quaisquer bases pré-gravadas.

Pode não haver rock clássico ligado à corrente, com saltos de cima do amplificador para a estratosfera, mas não deixa de existir arte nesta apresentação. A música soa densa, com grande suporte percussivo, a remeter, precisamente, para a era em que os Talking Heads assinavam os seus estudos comparativos entre o funk e a música africana. Daí a presença de 'I Zimbra' tão cedo no alinhamento. Mas o 'bailado' em palco é tão intrincado que por vezes até parece que dançam mais os músicos do que o público. E se assim é, este trocar de voltas à muito batida dinâmica dos concertos rock parece resultar.

Com este "American Utopia", Byrne descarta de facto a tradicional mise en scéne rock, aproxima-se da Broadway ou das experiências efetuadas no passado com a coreógrafa Twyla Tharp (com quem fez "The Catherine Wheel" em 1981) e oferece-nos um espetáculo radicalmente diferente, desafiante e até perturbador na forma como questiona ideias instituídas e cristalizadas. E há, claro, a dimensão política omnipresente: a dada altura, David recorda a sua anterior passagem por Cascais (“para um festival de cinema”) e injeta ali um sentido apelo ao voto (“mesmo que sejam eleições pequeninas”) reforçando a ideia de que temos que ser todos parte da comunidade, seja ela um bairro ou uma cidade do interior que se renova pela arte ou um país que evolui através do processo democrático. No final, a tocante canção de Janelle Monáe, 'Hell You Talmbout', é usada para enumerar vítimas de violência policial na América que recusa a utopia e parece continuar a preferir a dura e repressiva realidade. A tal em que Byrne se recusa a embarcar e que o leva a procurar razões para se ter ânimo. E essas podem estar na cabeça de um criador americano moderno ou nas mãos de um grupo de adolescentes de Trás-os-Montes. Uma razão para a nossa felicidade: David Byrne voltou a surpreender e a reinventar-se deixando claro, afinal de contas, que nem só da venda de t-shirts vive o rock.

November Radio David Byrne Radio Presents: Mali

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